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Odesson Alves Ferreira, 57 anos, teve um dedo amputado após o acidente
Foto: Mirelle Irene/Especial para Terra |
O tempo não foi um aliado das vítimas do césio 137. Após 25 anos do
maior acidente radioativo do Brasil, as pessoas que tiveram contato
direto ou indireto com a cápsula contaminada ainda sofrem. Vivem
marcadas pela expectativa sempre presente de desenvolver doenças
decorrentes à exposição ou pelo estigma perante à sociedade, nunca
superado. "A gente sofre preconceito até hoje. As pessoas sempre
perguntam se o fato de se estar perto de nós, ou se ao nos tocar, não
estaríamos contaminando elas, se não é perigoso. Ou até mesmo se é
verdade que nós brilhamos à noite. Perguntas desse tipo", afirmou
Odesson Alves Ferreira, 57 anos, presidente da Associação das Vítimas do
Césio 137.
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Por causa disso, quem foi exposto ao material ou teve contato com
contaminados prefere não falar sobre o assunto. "Quando vão ao hospital,
por exemplo, muitas, ao invés de contar suas histórias, se calam,
porque têm medo de falar", disse o presidente da associação.
Odesson disse que teve cerca de 50 pessoas da sua família envolvidas
direta ou indiretamente no acidente. Ele é irmão de Devair Ferreira,
dono do ferro-velho onde a cápsula foi aberta. No ano do acidente,
Devair perdeu a cunhada Maria Gabriela e a sobrinha Leide, filha de
outro irmão, Ivo Ferreira. Todos em decorrência da contaminação
radioativa. Ele próprio teve sequelas nas mãos, ao manusear fragmentos
de césio durante uma visita à casa de Devair. Ficou três meses confinado
com outras vítimas para tratamento. Teve um dedo amputado na mão
direita e um outro dedo atrofiado na mão esquerda. Seus dois filhos, com
12 e 14 anos na época, também foram afetados pela radiação.
Caminhoneiro e motorista de ônibus aposentado aos 32 anos por causa
das sequelas nas mãos, Odesson diz que o preconceito o impediu de voltar
a trabalhar. "Quando voltei na empresa que trabalhava, para tentar
ocupar outra função, o médico da empresa não quis nem pegar o documento
do INSS que eu levava. Aí eu percebi que a coisa era grave", disse.
Odesson lembra que, antes do acidente, era fã de filme de ficção
científica. "Mas jamais achei que aconteceria comigo. E não foi ficção,
foi uma dura realidade."
Problemas psicológicos
Odesson acredita que o acidente provocou um problema social por ter
afetado psicologicamente as vítimas. Para ele, muitas delas, mesmo que
não tenham falecido de doenças diretamente relacionadas à exposição ao
césio, acabaram consumidas pela tragédia. "Nós não podemos fazer nexo
causal, porque, infelizmente a ciência não nos garante isso. No atestado
de óbito do Devair, por exemplo, consta como causa da morte cirrose
hepática. Mas o que levou ele a beber quatro garrafas de cachaça por
dia? Ele mesmo dizia que tinha provocado o acidente, se sentia culpado
por aquilo. Ele se suicidou. Temos outras vítimas que tentaram suicídio,
mais de duas vezes", relatou. Odesson lembrou também do outro irmão: "O
Ivo morreu de efizema pulmonar, mas algo o levou a fumar seis maços de
cigarro por dia. Ele se sentia culpado por levar fragmentos do césio e
entregar para a filha", afirmou.
O presidente da associação disse que a dificuldade de comprovar
mortes ou doenças em decorrência da contaminação agrava a situação das
vítimas. Mas, para ele, não há como ignorar a herança do césio. "Um dos
indícios é a ocorrência de cinco ou seis doenças ao mesmo pleito, ou
desencadeamento de doenças precoces. Dentro do grupo tem gente que
desenvolve osteosporose e pressão alta com 20 anos. Isso não é normal",
apontou.
A associação que Odesson comanda foi criada em 13 de dezembro de
1987, por moradores da rua 57, onde a cápsula de césio 137 começou a ser
desmontada. "O pessoal vinha e tirava mesas, cadeiras e outros móveis
da casa deles e jogavam fora e eles não conseguiam ter acesso às
autoridades para serem ressarcidas. A saída foi criar uma instituição
para ter força jurídica", disse.
Hoje, a associação tem 1.194 inscritos, aceitos sob alguns critérios,
como comprovação de que foi vítima direta ou indireta do acidente, ou
ter morado em uma das localidades afetadas, ou, ainda, ser descendente
de vítima direta. Mesmo sem ter sede própria, a associação provê
assistência jurídica e outros serviços aos afetados. "Nosso maior
desafio é garantir a assistência integral. Eu já nem luto por
indenização, mas se a associação decidir, vamos lutar por isso também",
destacou. Segundo ele, só os parentes das quatro pessoas que morreram
comprovadamente por contaminação direta com o césio receberam
indenização do Estado. "No caso do meu irmão Ivo, deu para ele comprar
na época uma carroça e uma égua", disse. Nos cálculos da associação, 960
pessoas ainda tentam receber indenização nos últimos 25 anos. "Isso em
um universo de 1.600 que foram afetadas direta ou indiretamente",
contou.
Odesson, atualmente, dá palestras pelo Brasil sobre o acidente
radiológico de Goiânia, mas acredita que há muito despreparo ainda sobre
o tema. "O Brasil não está preparado para outro acidente, a Cnem
(Comissão Nacional de Energia Nuclear) nunca fez outro treinamento e nem
oficina para discutir o que foi feito em Goiânia. Muitos técnicos que
atuaram na época já se aposentaram. Tudo está caindo no esquecimento",
lamenta. Por fim, questionado de quem seria a culpa do acidente, Odesson
culpa a negligência dos donos do IGR, a clínica onde a cápsula foi
abandonada, a vigilância sanitária e o Cnem. "Quem foi o mais culpado eu
não sei, mas eu condenaria os três."
Os detalhes da tragédia
No dia 13 de setembro de 1987, no Centro de Goiânia, dois catadores de
lixo descobrem um aparelho de radioterapia abandonado. Com a intenção de
vender o metal, a dupla leva até um ferro-velho localizado na rua 57 do
Setor Aeroporto. O dono do estabelecimento, Devair Alves Ferreira,
compra o material e, naquele noite, abre a cápsula e encontra um pó que
emitia um brilho azul. Maravilhado com a coloração, ele leva para dentro
de casa e mostra para a cunhada, Maria Gabriela Ferreira, e para o
restante da família. Sem ter noção do que tinha nas mãos, ele passou
dias mostrando para amigos, vizinhos e parentes, o seu achado. Alguns
até levaram porções do pó para casa, como o seu irmão Ivo. Nesse meio
tempo, Devair e sua família começam a apresentar os sintomas da
radiação, como tonturas, náuseas e vômitos.
Alertada por vizinhos, a cunhada de Devair desconfiou que os problemas
de saúde tinham origem na cápsula. De ônibus, ela levou o material até a
Vigilância Sanitária. Os doentes, que já apresentavam queimaduras, eram
tratados no Hospital de Doenças Tropicais. Somente no dia 29 de
setembro foi constatado que o produto levado por Maria Gabriela era
radioativo e se tratava do césio 137, uma substância que não existe na
natureza e é resultado da queima do Urânio 235 dentro de um reator
nuclear.
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi acionada. O pânico
se espalhou por Goiânia. A Cnen monitorou os níveis de radioatividade de
mais de 110 mil pessoas, no Estádio Olímpico. Encontrou radiação em 271
delas, sendo que 120 tinham rastros em roupas.
No dia 1º de outubro daquele ano, 14 pessoas, em estado grave, foram
levadas para o Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas
depois, quatro delas morreram. A primeira foi Leide das Neves Ferreira,
6 anos, a sobrinha do dono do ferro-velho e que se tornou o maior
símbolo da tragédia. No mesmo dia, Maria Gabriela Ferreira, 37 anos,
perdia a vida também. Morreram ainda outros dois jovens, Israel Batista
dos Santos, 22 anos, e Admilson Alves de Souza, 18 anos. Os quatro foram
os únicos mortos segundo dados oficiais. A Associação das Vítimas do
Césio 137, no entanto, aponta que nesses 25 anos 104 pessoas tenham
morrido e cerca 1,6 mil tenham sido afetadas de forma direta.
Os responsáveis pela tragédia foram condenados por homicídio
culposo, ou seja, sem intenção de matar e cumpriram penas brandas. Em
fevereiro de 1996, quase dez anos depois do acidente, os médicos Carlos
Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e o físico
hospitalar Flamarion Barbosa Goulart foram senteciados a três anos e
dois meses de prisão em regime aberto. Os médicos e o físico tiveram que
prestar serviços à comunidade.
A decisão foi do Tribunal Regional Federal de Brasília, que modificou
as penas impostas pela Justiça de Goiânia. Em 1992, todos os envolvidos
tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso impetrado junto ao
TRF alterou toda a situação.
Sócios na Clínica de Radiologia de Goiânia, Carlos, Criseide e
Orlando foram considerados os principais responsáveis pelo acidente.
Eles deixaram, na sede da clínica, uma bomba radioativa. Com a retirada
de telhas, portas e janelas, o prédio ficou desprotegido e a bomba
acabou chamando a atenção de catadores.
O ferro-velho e outras residências da região foram destruídas, assim
como os pertences das famílias envolvidas, gerando toneladas de rejeitos
radioativos. Um depósito foi construído em Abadia de Goiás, cidade ao
lado de Goiânia. Em 1987, quando os rejeitos foram levados para lá,
Abadia de Goiás ainda não era um município.
FONTE:
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI6150380-EI306,00-Goiania+anos+depois+Perguntam+ate+se+brilhamos+diz+vitima.html
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Voluntários que ajudaram na descontaminação, cerca de 11 dias após a abertura da cápsula. |
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Transferência dos contaminados para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro |
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Monitoração da cápsula do césio por agentes da vigilância sanitária. |
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Enterro de duas das vítimas |